O que acontece(u) com Cannes e a publicidade este ano?

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Se você está chegando agora na publicidade talvez você nem saiba muito bem o que é o festival de Cannes e como ele acontece. E talvez você já esteja na indústria há um tempo, e só está num mercado não sudestino e nunca foi muito próximo de festivais e premiações. Então vamos a um resumo rápido do que é o Festival de Cannes por uma ótica um pouco menos eurocentrada, beleza?

O Festival de Cannes, conhecido como Cannes Lions, é uma premiação de criatividade que acontece desde 1954, em Cannes, na Riviera Francesa. Esse festival foi (e dependendo pra quem você pergunta, ainda é) por muitos anos uma importante baliza criativa do que acontece na indústria de publicidade. Dividido em diversas categorias, as premiações passam por Impresso, Filme, Outdoor, Inovação, Design de Produto, RP, enfim, um monte de categorias que abrange um número enorme de premiações.

O festival não paga premiação em dinheiro para as agências vencedoras. Ao passo que o preço da inscrição é bastante alto. Cada inscrição na categoria Titanium (o prêmio mais importante) está custando 2,110 EUROS (na conversão de hoje por volta de 10 mil reais). 

C A D A inscrição. Agora, imagine que o Brasil inscreve, em média, mais de 3 mil cases por ano, em diversas categorias. Ou seja, estamos falando de mais de 6 milhões em inscrições, na média. O que levou inclusive a questionamentos por parte da indústria se realmente vale esse investimento. E isso acabou levando a diminuição desse custo por parte de alguns grupos de comunicação.

Ah claro. Vale lembrar que se você ganhar, você leva 1 (uma unidade) troféu pra casa. Em formato de Leão (lógico). Mas deixa eu te contar. Esse provavelmente vai ficar na agência. Não pra você que trabalhou. Se você quiser levar um pra casa, vai precisar pagar. Se estivermos falando de um GrandPrix, uma duplicata do troféu mais importante do festival, está custando 4.100 euros (20 mil reais).

Mas aí você pode se perguntar “mas então porque as agências se inscrevem tanto? Calma. A gente vai chegar lá.

Fato é que o Brasil sempre teve uma expressiva representação nesse festival (é bem verdade que este espaço sempre foi majoritariamente ocupado pelas mesmas pessoas), mas muito por conta dessa premiação, e da lógica que envolve a remuneração de agências no país, ele permitiu que a propaganda brasileira fosse mundialmente reconhecida como criativa. Afinal, propaganda sempre gerou muito dinheiro, e esse dinheiro, em parte, sempre foi investido em inscrições.

O que aconteceu recentemente?

Lembra que eu falei que esse espaço lá sempre foi majoritariamente ocupado pelas mesmas pessoas? Pois é, a falta de representatividade e inclusão há vários anos também chega em formato de críticas e mais um desses questionamentos que esse festival traz. Eu não tenho coragem de dizer aqui que Cannes é algo irrelevante hoje pra indústria, tá? Ainda é uma baliza importante. Mas do ponto de vista de representação, é um lugar muito ocupado pelas mesmas lideranças brancas, heteronormativas e elitistas da nossa indústria.

Em função dessas críticas, o festival sim, correu atrás de se adaptar ao espírito do tempo, com iniciativas muito frutíferas como a InkWell Beach, um coletivo formado dentro do festival para promover temas como equidade, diversidade e inclusão.

Mas esse ano o festival errou. De novo. E errou feio. E dessa vez algumas dessas críticas foram públicas. Outras nem tanto (infelizmente).

Todo ano, são escolhidos jurados de diferentes agências de cada país, para julgar os cases inscritos. Entre os 28 jurados brasileiros no festival apenas um era negro. A organização foi cobrada. Com uma carta aberta assinada pelo coletivo Papel e Caneta, Aue Creators, Chapa Preta e Publicitários Negros, iniciou-se uma pressão para que Simon Cook e toda a organização do festival fosse transparente sobre quais eram os critérios de escolha dos jurados.

O ponto desse texto não é dar ainda mais visibilidade para o erro de publicitários e jornalistas que montaram a lista de jurados (eu recomendo que você leia o texto do Julio Beltrão, que aborda da perspectiva racial esse problema de uma forma muito melhor do que eu conseguiria). 

Mas aqui eu preciso SIM debater e cobrar a forma como a branquitude tem dificuldades em vocalizar os problemas quando estão envolvidos diretamente neles. Nós vimos pouquíssimas cobranças públicas das lideranças brancas que foram escolhidas para o júri. Ainda que essa pressão possa ter sido feita de forma privada, é preciso a manifestação pública desses problemas. Do contrário, a gente está aqui só se valendo do privilégio de pessoa branca, para continuarmos ocupando e mantendo a indústria como está.

Mas o segundo ponto mais importante que esse texto quer debater é: faz sentido a gente ter uma premiação nesses moldes, no mundo que a gente vive hoje?

O jovem ainda está conectado com esta premiação?

Veja, a gente tem visto essa migração importante de jovens e novas gerações migrando pra modelos digitais, para startups e tudo mais, e honestamente, premiações como essa deixam de povoar o imaginário de boa parte dos jovens. Porque, mais uma vez, jovens estão conectados com um monte de ideais que já não estão na premiação, nos reconhecimentos públicos, como uma pá de pesquisas que eu já mostrei nessa coluna nos textos anteriores, né?

Só que aí tem uma mecânica cruel na indústria de publicidade (veja bem, só do eixo Rio/SP. Cannes não é uma realidade para a imensa maioria do Brasil profundo, ok?), que é: quanto mais prêmios você ganha, mais seu salário sobe. Essa é uma das formas de impulsionar a busca por essas premiações.

E aí, não tem jeito, pessoas precisam pagar boletos, e subir um pouco o salário (que pode ser bastante desigual em publicidade) acaba sendo um atrativo. Mas lembra que eu te falei que havia um motivo pelas agências continuarem inscrevendo seus cases? 

Algumas agências de grupos internacionais, entenderam que, ganhar Cannes e outros prêmios, aumentam seu valor na bolsa de valores. E por isso, esses valores astronômicos continuam sendo pagos.

MAS a pergunta que ainda me pega é: o que acontece quando jovens buscam oportunidades em outros lugares, que não pertençam a grupos de comunicação? Quando uma boa parte dessas pessoas acaba se desconectando desses grandes centros onde premiações tem algum valor? E ainda mais importante que tudo isso: como um festival que não tem pessoas negras no júri, vai se relacionar com uma geração que cobra mais representatividade inclusão de vozes plurais?

Num país com uma maioria de pessoas desempregadas, uma dificuldade imensa a frente economicamente, a gente ter quase 3 mil cases inscritos em um festival que o troféu pode chegar a custar 1 ano de um profissional júnior no mercado, é um mercado que, pra mim, ainda tá muito descolado da realidade do país a qual quer representar.

Dito tudo isso, ainda assim, é preciso disputar esse espaço. Samantha Almeida uma vez disse num episódio de podcast que eu gravei com ela: “eu não vou criticar um lugar que os negros acabaram de chegar”. Descreditar Cannes como uma importante baliza desse mercado também não faz sentido. Porque sinceramente, se não fosse Cannes, seria outro festival, outro espaço de poder. Então o ponto não é ser Cannes. O ponto é o modelo de premiação não inclusiva, e verdadeiramente representativa que temos como baliza. Um modelo importado e elitista, que talvez não sirva à nossa cultura local.

Por isso é preciso a crítica pública em prol da transformação. Crítica essa que, novamente, as pessoas brancas tem muita dificuldade em fazer. Mudar a linha de chegada, na hora que minorias e grupos minorizados começam a chegar, também é uma forma de exclusão.

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